Tuesday, June 16, 2009

A mente camaleónica / O espaço vazio

Foto de Christof Leistl


"- Andava à procura de um recanto sossegado para fazer uma experiência. (...) Estou vazio. Só tenho gestos, reflexos, hábitos. Mas quero encher-me. É por isso que psicanaliso as pessoas. Mas não assimilo nada. Fico-lhes com os pensamentos, com os complexos, com as hesitações, e no fim nada me resta. Não assimilo; ou assimilo bem demais... o que vai dar no mesmo. É claro que retenho algumas palavras, algumas fórmulas, alguns rótulos; conheço quais os termos que devem empregar para as paixões, para as emoções, mas a estas não as sinto.
- Daí essa tal experiência - disse Ângelo - Mas apetece-lhe, de facto, fazer essa experiência?
- Certamente que sim - disse Jaimemorto - Aquele que eu assim psicanalisar terá que me dizer tudo. Tudo. Os pensamentos mais íntimos. Os segredos mais pungentes, as ideias mais obscuras, aquilo que ele nem ousa confessar a si próprio, tudo, tudo e o resto, e ainda mais o que houver por detrás disso. Nenhum analista o fez. Quero ver até onde se pode ir. Quero ter apetites e desejos e para isso apoderar-me-ei dos dos outros. Suponho que, se até hoje nada me ficou, é porque nunca fui suficientemente longe. Quero realizar ums espécie de identificação. Saber que existem paixões e não as sentir, é horroroso."

Boris Vian, O Arranca corações (óptimo português da tradução de Luiza Neto Jorge)

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